“há quem passe pelo bosque e só enxerga lenha pra fogueira”

“há quem passe pelo bosque e só enxerga lenha pra fogueira”

Toda palavra é uma mentira

É como se o pai, o patriarca da família, estivesse presente agora. Já pressinto os olhos fundos, a barba, os risos e também a súbita percepção de que tudo é findável: estivesse eu ali, retomaria o diálogo, tentaria expôr minhas culpas e meus devaneios – mas tudo o que fica é esse silêncio, essa brutalidade do ar pressionando os pensamentos dentro da casa. É estar só e sentir-se o mundo todo comprimido dentro destas dimensões. Eu poderia ser o ar, o arco, o início da árvore genealógica e estúpida na qual ponderaria minhas convicções assim como um monge, um andarilho ou um burguês: sou mórbido, inerte, aparentemente estilhaçado e só há uma palavra a me perturbar o sono na passagem das horas: fim.

Acordo: e o instante é lúcido como quem sai de uma caixa de segredos e se pauta em miniatura: são imensas as manhãs que tento beber, esconder no paletó, pisar com os sapatos sujos, acariciar com as mãos delicadas, estalar com os dedos vadios: fiz o que pude e o que pude foi pouco – fiquei a sobra, o sobrecarregamento de mim.

Aquilo que se aprende com Thiago de Mello

Não cresce o homem
da mesma maneira como cresce uma flor: arraigado
em seu peito, destoa a liberdade
– essa palavra canora -,
e canta, atravessa seu dia de fúria ou dor.

Alegre, canta: pássaro ao chão,
pleno de si ou do outro, abriga a manhã
nos olhos, desatina a amar como criança, como menino
que se apega ao ar: de aço, faz sua casa.
Na atmosfera abstrata, o amor é erigido.

Redige no homem sua aflição, seu temor: corta-lhes as asas
e lhe ensina, verdadeiramente, a voar.

De fato

Ajustar os dias a minha gratidão ao mundo: acabo por ter mais do que tempo, mas uma espécie de contato com o mundo lá fora. Estou preso a mim como um animal se prende aos instintos, farejando outra textura indissociável ao estado das coisas, que permanecem sempre do mesmo modo.

Linguagem: aço de minha estrutura. Acaso te perdi? Flor, flor-frutífera ou qualquer coisa que o valha: a mata de meus cabelos, meus dedos, minha dose documentária de papéis, meus heróis, ídolos, anjos. Ajusto a mim tudo isso porque já não caibo neste espaço que me pertenço: um ser em expansão.

12 de outubro

As primeiras noites me vieram como um líquido ou lâmina: afogaram meus pensamentos, esfaqueando meus sonhos como se tivéssemos realmente ousado sair desta órbita e pairar noutro universo que não este. Depois me vieram os olhos arregaçados pelas mangas, atraídos por uma sinfonia de músculos e lábios e acabamos contorcendo demais os ruídos que abafavam esse quarto. Pensei que houvesse obtido alguma gratificação, um lodo razoável deste mundo ao qual me rendo e me surpreendo ao conhecer-me convencido de que nada será uma esfera ou um tanque de guerra. Saíremos aos montes, como grãos de alguma colheita ou mesmo família reduzida a pó: teremos nossos pés atados, como se estatalmente nos soubéssemos gratos. No fundo, somos ingratos com o que temos e com o que nos acolhe: temos sempre a mão um impulso e nossa força é pífia como se Deus ou os deuses ou orixás ou pouco importa a força divina ou talvez não tão divina assim aproximasse nossas idéias dos cotovelos e secretamente nos dissesse aos ouvido: sabes de ti o tanto quanto de mim.

E nos joga além. No entanto, fica o fim a principar.

(Façam silêncio)

Estar no mundo exige uma paciência da qual às vezes não disponho: alegram-me os pequenos passos que dou pela manhã, carregando ainda as cicatrizes da noite (voraz) que me consome em sonhos ou líquidos. Carrego, ainda, a existência mal-acabada, a inaptidão para o mundo, uma visão um tanto torpe da realidade: é contrastante meu modo de andar e viver quando correlaciono aos de outros.

Tentar colocar tudo num papel, desdobrá-lo como faço com essas sílabas, ancorar minha raiva e minha indignação em algo e supor que isso se executa de tal forma ou de outra maneira qualquer. Não me importa, de fato. Penso que não me importa, mas no fundo deve importar algo, afinal, me construo a cada dia nessas doses de horas, nesses arcabouços de falas e grunhidos que soltamos aos montes, ao léu, ao deus-dará.

Escrever é supor que há sílabas no intangível. É o maior acerto e o maior engano do homem. Escrever é silenciar o que é silêncio deveras.

A conta, por favor.

Lutaste, escreveste, desempenhaste um papel. Foste o último homem
a levantar a língua contra o mundo, ternura seca.

Foste e já não existes: ficaste para nós como história
um vento a nos estancar os lábios: já não temos direito à voz, calamo-nos
porque o dia agita as vozes, detém as esperanças, atravessa
teu corpo (agora frio) e o transfigura de silêncio.

Um silêncio anunciado de palavras.

(Esboço de um poema em junho)

Não carregues o vento nas costas nem mesmo
o tenhas como um raio, um trovão qualquer a te abastecer mínima
manhã: onde quer que tu te encontres, haverá luz
e um pouco de sol – esse frágil, tão frágil, sol que nos banha
agora como pomos de uma fruta; há liquidez, há raridade.

Não há palavra segregada ou sagrada ou sangrenta: há palavras
que nos bailam como doces donzelas, dulcíssima manhã, pintando um quadro
já exposto ou esquecido: uma tela para nos comover, um caminho.

Sobre portos e partir (II)

As implicações de Sevv me foram muito cruéis, a princípio, desatando-me a desfolhar minha pequena biblioteca, fazendo com que meus dedos se enroscassem numa nuvem: depois veio uma certa libertação, um lirismo banderiano, uma bandeira de paz comigo mesmo: reconhecimento no outro. Só então me partiram as manhãs, resvaladas em vinho, poderosa manifestação da dor de um cacho de uvas.

Os portos ficaram: se quiser ir novamente, terei de te fazer porto, levar teu corpo e tua mente e tua alma e todos os apêndices que te formam, pequenina manhã, manhãzinha de sol frágil, para que tu também possas ver o que vi, o que verei, o que nos toma por assalto, impactante, assustadoramente te levarei comigo como quem leva sonhos guardados num pote ou numa caixa de papelão: aqueço teu corpo e tu me aqueces, esqueces de mim por um segundo, dissonância da dor.


Burguesia

Híbrido espanto: poemas, contos, comentários e de vez em quando ciências sociais.

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