Posts Tagged 'prosa poética'

Um sol para as linhas

Fico com essas palavras envoltas em meu manto de canto: os silêncios são compostos líquidos, corroem o tempo com sua estrutura de aço e linho, sacodem o pó da terra, retiram de mim o que há de estranho. Cântico e silêncio: escrevo com vestes de quem partiu, de quem se foi, mas que está a espreitar um tempo.

Não mistifico a vida, não há o que se fazer, nem mesmo o tango argentino seria agradável. Escuto o que há para escutar: vazio. Recolho, então, meus papéis (nos quais o tempo se insere, sinuoso) e arranco e arranho e arrisco dizer: tempo-matéria, coisa opaca, estranhamento de dias. Faço de tudo para não fazer e como um barco a velas, um barco à deriva, me sinto porto em pátria desconhecida.

Desconexos desencantos em minha volúpia. E canto e digo e sou: arquivista de negação.

Uma manhã com Caeiro

Despertam os pássaros em meu olhar: acordo. Há copos, talheres, xícaras de café, tudo desorganizado sobre a pia. Há desordem no meu tempo: não o vivo, como um cão ou um inseto, também não o vivo (tempo, tempo, tempo) em horas, minutos. Meu tempo se desfaz, novelo de linha, pote de açúcar, erva-doce.

Preparo um café e tu choves: ouço teus passos largos lentos loucos aguando o tempo.

Outono #1

Há outono em mim e sinto frio. Acordo: começo a me mover pela cama, resvalando nos cobertores, como se buscasse nela um outro mundo: é pequena, mal cabe meu corpo. É tão pequena que infinitamente se desdobra, alcaçando proporções inimagináveis, pedaços de eternidade, liquidez.

Eu carrego terremotos nos bolsos. Tenho nas mãos o peso das estações, o barulho da cidade, os rios de minha aldeia. Tenho nas mãos versos de Pessoa, uns avessos de mim.

E hoje sou outono. Amanhã, outros.

A caminho de casa

Comecei a repetir teu nome de repente. Penso que foi um processo tão natural que não reparei que primeiro me vieram as letras embaraçadas, depois as sílabas e então teu nome cresceu dentro de mim, a começar pelos meus pés, como se tivessem penetrado em minha pele em algum lugar que pisei, algum chão maciço e cuidadoso, ladrilhado, e nesse chão as letras dispersas vieram ao meu corpo, tomando-me como um hospedeiro desta dor e desta ternura.

Foi assim que conheci os anjos, também: vieram primeiro pelos pés, alçando vôo menores, tímidos, dentro de mim, até que num desses vôo encontraram palavras feitas. Encontraram teu nome: engoliram-no, teu nome avesso, e hoje o gritam, tocam teu nome, te tocam.

E inexisto na minha incompreensão: já esqueço que me habito, que tu me habitas e que só os anjos vivem em mim. E eu já não me pertenço.


Burguesia

Híbrido espanto: poemas, contos, comentários e de vez em quando ciências sociais.

Calendário

abril 2024
S T Q Q S S D
1234567
891011121314
15161718192021
22232425262728
2930  

Páginas